Fonte: Jornal Alef
Fui educado no Kuwait, tive sempre tudo do bom e melhor. Meu pai, proprietário de uma grande empresa de construção civil, sempre nos deu de tudo - aulas de piano, natação, caligrafia e viagens por todo o mundo. Mesmo sendo muçulmanas, nossa família era e ainda é laica e meu pai nos deixava distantes de qualquer grupo religioso. Mesmo assim fomos educados acreditando que os israelenses e os judeus são as criaturas do mais baixo nível de existência na face da Terra e que foram colocados no mundo com o único propósito de tentar matar a nós, os árabes. Nas aulas de matemática nossa professora apresentava o problema: "Se um foguete mata X número de judeus, quantos foguetes seriam necessários para matar X judeus?" Meu pai sempre foi partidário de uma ideologia anti-israelense. Foi educado no sistema escolar sob a visão de Nasser, que seria uma escola muçulmana, com ponto de vista secular, mas dedicada à união dos árabes em caráter mundial. Israel, em seu parecer, era somente uma colônia americana dentro do Oriente Médio. Meu pai sempre apoiou a OLP, desde 1960, quando o então fundador do movimento, Yasser Arafar, vivia no Kuwait, e levantava fundos de empresários vivendo no Golfo Pérsico. Como engenheiro, meu pai participava da união dos trabalhadores que doavam parte dos seus salários direto da fonte para a OLP. Meu pai nos dizia que a resistência seria a única maneira de lidar com Israel.
No verão de 1990, quando eu tinha apenas 12 anos, a vida da nossa família mudou para sempre. Estávamos em férias escolares quando Saddam Hussein invadiu o Kuwait. O negócio do meu pai, assim como de muitas outras pessoas, foi destruído. Todas as nossas economias se transformaram em pó. Não podíamos mais retornar ao Kuwait. Fomos morar no Canadá. Meu pai conseguiu retornar ao Kuwait para pegar alguns documentos, que depois serviriam para conseguir uma compensação financeira do fundo das Nações Unidas. De toda minha família, eu fui o único que segui morando no Canadá. Meu pai nunca se adaptou ao novo estilo de vida ocidental, e com bons contatos de negócios, foi morar na Jordânia. Toda minha família retornou ao Oriente Médio. Um dos meus irmãos é um grande empresário na Jordânia, e dois outros irmãos estudam no Egito, um estuda Economia e um outro, Odontologia. Minha irmã vive em Dubai, onde trabalha no mercado financeiro. Em uma noite de 2003, eu estava estudando na biblioteca da universidade em uma cidade que se chama London, em Ontário, no Canadá, quando vi um senhor de idade. Com trajes tipicamente chassídicos, parecia ser um judeu religioso. Tomado por repentina curiosidade, aproximei-me e perguntei: "Você é judeu?" Com um simpático sorriso ele respondeu, para minha surpresa: "Não, mas gosto de me vestir assim". Eu não sabia se estava brincando comigo ou não. Todos os religiosos que havia conhecido até este momento da minha vida eram figuras muito sérias, sisudas. Pensei: "De repente os judeus teriam senso de humor?"
Seu nome: Dr. Itzhak Block, um professor aposentado de Filosofia. Trocamos umas palavras e ele perguntou sobre minha família. Disse que a história da minha família é muito complexa e sempre fico com dor de cabeça quando tenho que contar. Simplesmente disse que sou um árabe do Kuwait e que minha avó, mãe da minha mãe era judia. Meu avós se conheceram em Jerusalém, meu avô, um árabe da Cisjordânia, servia no exército de resistência contra os sionistas. Ele tinha 18 anos, e minha avó 16. O pai da minha avó tinha uma escola em Jerusalém, e foi lá, de onde ela ficava observando meu belo avô, que acabaram se conhecendo, casando-se e indo morar em Nablus, na Cisjordânia. Após meu avô ter sido liberado do exército jordaniano, a família se mudou para o Kuwait, onde a promessa de um futuro melhor era promissora. Essa foi a história do casamento dos meus avós. Saber do lado judaico da minha avó sempre me deixou curioso. Sempre que ia para a Jordânia de férias, eu assistia ao canal de TV israelense, quando meus pais não estavam por perto. A parte que mais gostava era o hino nacional israelense, e ficava às vezes esperando até tarde para escutá-lo, no fim da programação. Mas, voltando à biblioteca, aquele senhor, judeu religioso, Dr. Block, olhava para mim enquanto eu narrava. E, finalmente ele pontuou: "Pela lei muçulmana, você é considerado muçulmano, já que a religião vai de pai para filho, mas pela lei judaica, a religião passa pela mãe, e sendo assim, você é judeu". Minha mente começou a trazer memórias da minha infância no Kuwait. Lembrava-me de que minha avó tinha um nome curioso em seus documentos - Mizrahi - nunca havia conhecido nenhum árabe com esse nome. Ela também tinha um pequeno livro de rezas, em hebraico, com o qual ela rezava aos prantos. Minha avó nunca mencionou nada sobre seu passado judaico - mas agora as peças começavam a se encaixar. Eu agradeci ao Dr. Block pela conversa e corri para conversar com meu companheiro de quarto na universidade sobre o que havia acontecido. "Então você é um Muçudeu" - disse meu amigo. Agora quem estava mais confuso era eu. Liguei para minha mãe e ela disse: "Não escute estes tipos de pessoas, você é muçulmano como todos nós".
Liguei para minha avó, e comecei a falar do assunto. Comecei aos poucos, afinal há 50 anos minha avó já negava sua origem. Mas perguntei: "Vó, a senhora é judia?" Minha avó não respondeu esta pergunta de forma direta, mas começou a chorar e falar das guerras entre árabes e israelenses. Me disse que seu irmão Zaki fora morto em Jerusalém antes de 1948. Para mim já era o suficiente e parei a conversa por aqui. Nos próximos meses evitei falar sobre judaísmo, para não deixar minha mãe triste. Estava terminando a faculdade e tinha toda minha carreira pela frente. Fiquei contente em me considerar de uma família mista.
Um ano depois, estava patinando em meu bairro, quando cai e me feri bem forte. Na pista de patinação não havia buracos e comecei a pensar que havia sido empurrado por "alguém lá de cima". Nunca tive nenhuma aspiração a nada espiritual e nunca pensei em temas que me levassem a tópicos religosos. Sempre me preocupei com meu aspecto físico, meu corpo, centenas de amigos e ter uma carreira de sucesso. Então, por que teria acontecido isso comigo? O que tive que fazer definitivamente foi tirar alguns dias de férias para minha recuperação. Dr.Block havia mencionado o nome de uma sinagoga, e no sábado de manhã fui para lá ver o que acontecia. Fiquei preocupado que todos lá seriam de descendência européia e eu do Oriente Médio, mas fui mesmo assim. Chamei um táxi que me deixou na sinagoga. A primeira pessoa que vi pela frente parecia que era da Índia. Me deu as mãos e disse: “Shabat Shalom” e me deu uma quipá. De repente vi uma pessoa negra - não imaginara que pudessem existir negros judeus. E, de repente, avistei também o Dr.Block. Me entregaram um livro de rezas, e estavam todos cantando "VeShamru"- olhei na tradução em inglês. "E os filhos de Israel devem cumprir o Shabat, para fazer o pacto para as gerações. Entre Eu e meus filhos de Israel, porque este é o sinal de que Deus criou o céu e a terra, e no sétimo dia descansou".
Algo me impregnou de força e inexplicavelmente sentia que já conhecia esta música. Fiquei de pé, internalizando os sons, sentindo o aroma da sinagoga e assimilando essa bela visão do local. Parecia tudo perfeito. Porém, isso tudo era totalmente o contrário de tudo o que havia escutado sobre os judeus e sobre o judaísmo desde pequeno. E foi então que comecei a chorar. Após o Kidush, a reza com o vinho que marca o final da reza de manhã, eu aceitei o convite do Dr.Block para almoçar em sua casa. Disse: "Não posso acreditar que estou aqui, cantando e rezando em hebraico". Antes de sairmos para sua casa, conversei com um casal de judeus de origem egípcia que me contou um pouco de suas histórias. Judeus de diversas origens - para mim foi mais uma peça do tabuleiro que se completava.
Dr. Block retrucou: "Não é difícil de acreditar na sua história. Todo judeu nasce com uma pequena Torá e uma Menorah dentro de si. Me deu um leve abraço e disse: o que falta é simplesmente vir um outro judeu e ajudá-lo a acender sua chama". Meu interesse cresceu e comecei a estudar Torá e a cumprir o Shabat. Ano passado eu passei um mês em Israel, passeando e estudando no programa da Aish Hatorá, em Jerusalém. Foi excelente "chegar em casa". Ainda mantenho contato com minha família e meus velhos amigos. São pessoas maravilhosas e eu os amo. Com certeza é difícil o relacionamento em alguns níveis, já que no mundo árabe existe um entendimento distorcido a respeito de Israel. Estou trabalhando em um projeto para educar os árabes sobre judeus e judaísmo para tentar divulgá-lo em escolas muçulmanas e para a mídia. Eu acredito que meu passado e minha origem me tornem uma pessoa apta para realizar este projeto. Um outro caminho que vejo é estabelecer relações econômicas mais fortes entre Israel e países árabes. Isso poderia gerar respeito, confiança e bons resultados.
Outro assunto que estou trabalhando é a questão do Holocausto, já que muitos árabes negam sua existência. No verão passado estive em Auschwitz e estou produzindo o primeiro documentário em árabe sobre o Holocausto. Eu quero explicar aos árabes, em sua própria linguagem, sobre o que aconteceu. Às vezes, pensamos que o conflito árabe-israelense é irreversível. No entanto, eu acredito que ainda existe a possibilidade de mudar. Atualmente, os árabes têm mais acesso à educação formal, universal, o que os transforma em pessoas mais abertas e curiosas. Além de encontrar com israelenses e judeus em suas viagens pelo mundo, e ter informações via Internet, o que pode ser usado para alcançar a paz. Um outro assunto que chama a atenção é a assimilação em Israel. Meus primos judeus, por exemplo, vivem como muçulmanos no Oriente Médio. Infelizmente, a história de minha avó não é tão rara como se pensa. Muitas jovens judias são procuradas por jovens árabes. E, como minha avó, acabam se casando e indo morar em suas vilas. Os filhos e netos terminam por não saber da verdade, principalmente pela tensão política e pressão familiar. Como resultado, o povo judeu perde parte de seu próprio povo. Minha mãe tem cinco irmãs, e tenho algumas dezenas de primos, todos judeus - e todos vivendo como muçulmanos no Oriente Médio. Há pouco tempo me encontrei com um israelense de sétima geração, cuja prima casou-se com um palestino e foi morar na Arábia Saudita. Seus descendentes são judeus, vivendo como muçulmanos na Arábia Saudita. Todos os meus parentes sabem que pratico o judaísmo e a maioria deles aceita. Eu posso falar com eles sobre judaísmo e eles se mostram interessados, politicamente corretos. Nos amamos e nos respeitamos. Meu pai não aceita muito, devido ao seu passado, seu estilo de vida muçulmano laico, e a memória das guerras contra Israel, que são os pilares de sua vida. Quando comecei a me interessar pelo judaísmo, não contei ao meu pai imediatamente. Um dia, estávamos tendo uma discussão política, e eu mencionei que apoio o Estado de Israel. Minha fala causou uma grande polêmica, e aprendi a tratar deste assunto com meu pai somente de forma indireta. Sempre quando eu "passo dos limites" na discussão ele fica muito nervoso e me chama de Sionista. Uma outra exceção, por incrível que pareça, é minha avó. Eu sempre pergunto sobre sua família e seu passado e ela se recusa a falar. Espero algum dia encontrar alguma abertura para conversar a respeito. Fui crescendo tendo acreditado que os judeus são as fontes do mal no mundo, descendentes dos macacos e porcos. Mas, em contrapartida, me acostumei a ver em segredo minha avó com seu pequeno livro de rezas em hebraico, rezando com grande devoção. Ela me deu uma alma judia e, mesmo que involuntariamente, deixou acesa a chama do meu judaísmo.
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